Especiais O POVO – Destino Geopark Araripe

O Geopark Araripe, da rede global de geoparques da União das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), é um laboratório de possibilidades e descobertas para o Cariri cearense, o Brasil e para o Planeta. Não é exagero. No sul do Ceará, a Unesco resolveu apostar na reverberação sobre a relevância geológica dali para compreensão das reviravoltas ambientais da Terra há milhões de anos e suas atualizações. Uma aposta, também, na insistência por um ser humano transformador do lugar de existência, por destinos sustentáveis, com repercussões do quintal para Casa Comum.

Do fóssil ao homem, a Chapada do Cariri tem biografia singular e universal. Há 13 anos, foi incluída na rede de geoparques da Unesco como um dos 127 territórios ativos para, por exemplo, exercitar a consecução dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas.

O Geopark Araripe, administrado pela Universidade Regional do Cariri (Urca) e o único no Brasil, já é reconhecido como “bom exemplo de intervenção territorial focada na proteção e promoção do patrimônio natural e cultural colocados a serviço dos habitantes e visitantes que o demandam”. A observação é do professor lusitano Artur Agostinho Sá de Abreu, coordenador da Cátedra Unesco em Geoparques, Desenvolvimento Regional Sustentável e Estilos de Vida Saudável da Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro (Utad) e do Geoparque Arouca, de Portugal.

Há desafios em quantidade e a necessidade de correções de percursos no manejo territorial nos nove geossítios esquadrinhados em seis municípios do Cariri. Uma das urgências é o envolvimento radical das prefeituras com o conceito e a prática da ideia do Geopark (Unesco) Araripe. Entender que a parceria é próspera e tem perspectiva sustentável para o cidadão em seu habitat, para o visitante, o meio ambiente e a economia da região.

A seguir, um convite ao leitor para uma visita guiada ao “Destino Geopark Araripe”. Uma viagem pelas narrativas geopaleontológicas da Bacia do Araripe e por enredos sobre o homem e a terra que o habita.

(Foto: Fábio Lima/O POVO) 

 

PERCURSO

 2000 mil quilômetros
foi trajeto percorrida pela equipe do O POVO, de Fortaleza ao Geopark Araripe no Sul do Ceará
3.796 km²
é o tamanho do território do Geopark Araripe, esquadrinhado em nove geossítios nos municípios de Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Missão Velha, Santana do Cariri e Nova Olinda
92
Geossítios foram mapeados dentro do Geopark Araripe com potencial para experiências de desenvolvimento sustentável. Por enquanto, nove receberam autorização da Unesco

 

 

Relicário pré-histórico

As descobertas recentes de fósseis de um crocodilo, um dinossauro e de um novo pterossauro desafiam a ciência no Geopark Araripe e são pontes para o geoturismo

Parte de um crocodilo que viveu entre 199 e 155 milhões de anos, onde hoje se testemunha a bacia do Araripe, é a mais nova evidência científica de que o Cariri cearense tem um universo paralelo. A relíquia, uma vertebra e outras interrogações investigadas por pesquisadores do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU-Urca), deverá indicar que o réptil é o mais antigo fóssil do gênero descoberto no Brasil.

O rastro do crocodilo do jurássico, conta o paleontólogo Álamo Saraiva Feitosa, continua sendo seguido em escavações no solo de Missão Velha – um dos seis municípios que esquadrinham o território do Geopark Araripe, no Ceará. A busca é uma tentativa de achar o restante dos fragmentos do corpo da criatura pré-histórica que, já se sabe, era de água doce e pode ter medido entre 2 e 2,5 metros de tamanho. Um vertebrado mediano para uma era de criaturas gigantes.

É um quebra-cabeça iniciado há milhões de anos na Terra e que encontra na bacia do Araripe encaixes importantes para se entender as transformações do mundo até aqui. “O fóssil precioso de um crocodilo ou de outro organismo nos ajuda a remontar um sistema do passado para estabelecer pontes e incursões com cenários atuais”, simplifica Álamo Saraiva – coordenador do LPU. É uma autopsia do paleoambiente do animal arquivado na rocha para se saber a evolução e extinção de espécies.

Até hoje, das entranhas da bacia do Araripe foram descritas três espécies de crocodilomorfos. Em 1959, o paleontólogo gaúcho Llewellyn Ivo Price batizou a primeira pedra de fóssil desse vertebrado: o Araripesuchus gomesii. Seguido, em 1987, pelo Caririsuchus camposi – descoberta de Alexander Kellner, atual presidente do Museu Nacional. E em 2003, o inglês David Martill e mais três cientistas deram nome e reconstituíram prováveis hábitos do Susisuchus anatoceps.

Há, fora da Cariri cearense, apenas dois fósseis associados às características do Araripesuchus gomesii. Pedras coletadas ou traficadas da bacia do Araripe. É um crânio quase inteiro e uma mandíbula que fazem parte da coleção do antigo Departamento Nacional de Produção Mineração (atual Agência Nacional de Mineração), no Rio de Janeiro. E o fóssil de um crocodilo juvenil, parcialmente completo, depositado no American Museum of Natural History, em Nova Iorque (EUA).

No próximo mês, revela Álamo Saraiva, um artigo científico sobre o crocodilo do jurássico do Geopark Araripe será compartilhado pela revista Plos One. Uma plataforma online da Public Library of Science especializada em discussões sobre descobertas na ciência e na medicina.

Por enquanto, os detalhes sobre o achado e suas contribuições para o labirinto da história natural do planeta pedem discrição científica e sigilo. Há mais dúvidas do que respostas, completa Álamo Saraiva. “E isso é bom”, afirma o cientista contra certezas traiçoeiras para a ciência que estuda vestígios do passado a partir de fósseis de bichos, micro-organismos, plantas e outras chaves para explicar existência.

Nas mesas do minúsculo e importante Laboratório de Paleontologia da Urca, cientistas do Ceará e da China se apertam para decifrar também mais três enigmas encontrados na jazida fossilífera do Geopark Araripe.

São fósseis de uma planta quase completa – uma gimnosperma do cretáceo inferior com aproximadamente 115 milhões de anos e garimpada nas pedreiras de calcário laminado de Nova Olinda. Há ainda a perna de um dinossauro, também do cretáceo inferior, escavado em Santana do Cariri. E a cabeça de um pterossauro apreendida pela Polícia Federal das mãos de traficantes especializados em passado.

O novo dinossauro, descoberto desta vez por cientistas do Laboratório de Paleontologia da Urca, se juntará a quatro já descritos da bacia do Araripe. Esta semana, o paleontólogo e diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, desembarcará no Crato para se bater o martelo sobre anos de estudos em torno da espécie.

Alexander Kellner e Diógenes de Almeida Campos apresentaram, em 1996, o Angaturama limai. A criatura, ao lado do Irritator challengeri – descrito e desterrado pelo inglês David Martill, também em 1996 – representaram as primeiras descobertas da família dos spinossaurídeos na América do Sul. São dois dinossauros grandes, segundo Álamo Saraiva. Habitavam, provavelmente, o mesmo ambiente, possuíam focinho bem alongado e dentes desprovidos de serrilhas.

Para Kellner e Álamo Saraiva, os fósseis escavados na bacia do Araripe têm notoriedade reconhecida no mundo dado o nível de conservação. Apesar dos milhões de anos debaixo da terra, apresentam partes de tecido mole – pele, vasos sanguíneos e fibras musculares preservadas em três dimensões.

O Santanarator placidus, decifrado por Kellner em 1999, é uma prova do incomum para a paleontologia e gatilho para o tráfico de peças raras saqueadas do Cariri cearense. O Mirischia asymmetrica, levado para ser descrito na Inglaterra por Darren Naish, em 2004, é outro exemplo.

A espécie, que poderia fazer parte da coleção do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, possui “estruturas moles de parte do intestino”, pronunciada assimetria dos ossos da cintura pélvica e um possível saco aéreo pós-púbico, de acordo com Guia de Trabalho de Campo em Paleontologia na Bacia do Araripe.

Demitri Túlio   

SOBRE AS ESPÉCIES GIGANTES

PTEROSSAUROS

PTEROSSAUROS

19 fósseis de pterossauros, escavados na bacia do Araripe no Ceará, foram descritos. O que faz do Geopark Araripe a maior área de descobertas no mundo sobre a criatura alada. Os pterossauros descritos Geopark são de duas famílias: a Anhangueridae, que possuía crista na ponta do bico e dentes grandes. E a Papejaridae, que não tinha dentes e que apresentava uma crista na cabeça (em cima do crânio)

DINOSSAUROS

DINOSSAUROS

4 dinossauros, achadas na Chapada do Araripe, já foram descritos até hoje. Uma quinta espécie está em via, sendo investigada. As criaturas são das famílias raptoridae (raptores) e da spinhosauridae (marinhos e com uma grande ”vela” nas costas)

CROCODILOS

CROCODILOS

3 crocodilos pré-históricos foram descritos na área que hoje conhecemos por Geopark Araripe. Dois de ambiente de água doce e outro de águas salgadas. OAraripesuchus gomesii, o Caririsuchus camposi e o Susisuchus anatoceps

PEIXES

PEIXES

28 espécies de peixes foram descritas na bacia do Araripe, no Cariri cearense

INSETOS

INSETOS

Mais de 200 espécies de insetos foram estudadas por pesquisadores que trabalham com fósseis da Chapada do Araripe, no Ceará

PLANTAS

PLANTAS

64 espécies de fósseis plantas, desde samambaias a plantas com flores e frutos, foram descritas no Cariri cearense

MOLUSCOS

MOLUSCOS

10 espécies descritas a partir de escavações na bacia do Araripe, no Ceará. Além de doze ouriços/conchas e 5 cinco camarões

Santuário dos pterossauros

Geopark Araripe tem pelo menos 25 pterossauros descritos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Um novo fóssil do réptil voador está sendo investigado

(Foto: Tati Lima/O POVO)

Provavelmente, a Bacia do Araripe foi uma espécie de santuário de pterossauros. Antes de serem extintos, há pelo menos 65,5 milhões de anos, teriam migrado solitários ou em bandos para se alimentar e, talvez, se acasalar num território inimaginável que se transformou no que aprendemos a chamar de Chapada do Araripe. São hipóteses conversadas com Renan Bantim e Álamo Saraiva, dois pesquisadores do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU).

A possibilidade de ser um refúgio paleoecológico ou de ser um entreposto para alimentação estaria fundada, principalmente, na quantidade de pterossauros descritos originários da Bacia do Araripe, no Cariri cearense. De 1984 para cá, pesquisadores brasileiros e estrangeiros investigaram pelo menos 25 espécies do sul do Ceará que pertenceriam a duas ou mais famílias. Há uma divergência. Os paleontólogos do LPU consideram a Anhangueridae e a Tapejaridae. Outros estudiosos acrescentam a Pteranodontoidea, Ctenoschamatoidae, Ornitocheiridae e a Dsungapteridae.

No Brasil, entre instituições internacionais e entre pesquisadores experimentados em escavar, preparar e decifrar fósseis não se discute o valor paleontológico da Bacia do Araripe. É referência. E se tratando de pterossauro, a jazida fossilífera dessa banda do planeta é ponte para travessias científicas entre os continentes hoje separados e que formaram a Pangeia entre 200 e 540 milhões de anos durante a era Paleozoica.

As incursões de paleontólogos respeitados no universo da pesquisa científica, como as do teuto-brasileiro Alexander Kellner , atual diretor do Museu Nacional e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, confirmam a abundância da região. Ali, crava Kellner, se “encontram dois dos principais depósitos fossilíferos do Brasil e do mundo: as formações Crato e Romualdo”.

Tecido incomum. Em 1984, segundo o Guia para Trabalhos de Campo em paleontologia na Bacia do Araripe, o pesquisador brasileiro Diógenes de Almeida Campos descreveu “a preservação da membrana alar de um pterossauro”. Quatro anos depois, o inglês David Martill “relatou a preservação de fibras musculares, pele e ovário com ovos e restos estomacais em um Rhacolepis”.

Só recentemente, fora dos domínios da Bacia do Araripe, dois pterossauros foram descritos no Brasil. Em 2014, atesta Renan Batim, os paleontólogos Luiz Weinchu e Paulo Manzig, do Centro Paleontológico da Universidade do Contestado (Cenpaleo), e Alexander Kellner publicaram artigo científico revelando o Caiuajuara dobruskii, no Paraná.

Os ossos do Caiuajara foram descobertos por agricultores, em 1971, numa propriedade rural particular em Cruzeiro do Oeste, mas passaram anos confinados em um armário do museu do Cenpaleo, em Santa Catarina. Retomada as pesquisas, foram feitas novas coletas no “cemitério” das ossadas e, finalmente, conseguiram definir a espécie da família dos Tapejaridae.

Do mesmo arquivo do leito de ossos, numa área que no passado foi um deserto, também saíram os fósseis que revelaram o Keresdrakon vilsoni ou “Dragão espírito da morte”. Uma nova espécie de pterossauro, que habitou o Brasil entre 80 e 110 milhões de anos.

O réptil voador foi apresentado neste mês à comunidade cientifica e passou a fazer parte da coleção do Museu da Terra e da Vida, na Universidade do Contestado, em Mafra. No artigo sobre a descoberta, publicado na Revista da Academia Brasileira de Ciências, a assinatura de Renan Bantim e paleontólogos de sete instituições.

Luiz Carlos Weinschütz, coordenador do estudo e professor da Cenpaleo, afirmou que a novo pterossauro provavelmente vivia em pequenos grupos, em áreas desertas, com pouca vegetação e oásis de água. O réptil voador é contemporâneo dos dinossauros, de carnívoros e foi considerado de grandes dimensões, com bico grande e forte.

Os pesquisadores concluíram que o Keresdrakon vilsoni tinha 2,50 metros de envergadura e pesava entre 15 kg e 20 kg. Como o réptil alado não tinha penas, ele teria de ser muito leve para voar e tinha ossos muito finos. “Uma espessura de 1,5 mm”, segundo Luiz Carlos Weinschütz. E era um pouco menor que a maioria dos pterossauros encontrados no Geopark Araripe.

Renan Bantim usou da paleohistologia para auxiliar decifração do “dragão” do Paraná, uma técnica em evidência nas pesquisas mundiais, mas pouco explorada no estudo de fósseis no Brasil. Por causa de sua especialidade e a referência dos achados no Ceará, o paleontólogo já havia participado antes da descrição de 260 ovos de um pterossauro da espécie Hamipterus tianshanensis. Eles foram encontrados no deserto de Hami, no nordeste da China, por pesquisadores chineses do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia da China (IVPP).

“O extraordinário é que continham centenas de ovos, junto com filhotes, embriões, e indivíduos adultos machos e fêmeas, representando uma população de pterossauros que viviam em um oásis”, vibra Bantim, doutor em Geociências pela Universidade Federal de Pernambuco e professor substituto da Urca.

Bantim, Álamo Saraiva e Artur Souza, do LPU, estão tentando abrir novas passagens para a pré-história a partir de estudos inéditos de um crânio quase completo e o bico de um novo fóssil de pterossauro do Geopark Araripe. Será o 26º descrito.

O pterossauro ainda não tem nome. Porém há indícios de que o réptil voador também seja da família dos tapejaridae. Espécie abundante da Chapada do Araripe encontrada, geralmente, na formação Romualdo. O fóssil, regatado em 2017 pela Polícia Federal com a prisão de traficantes especializados, seria uma criatura em idade juvenil. Uma chave inédita para novas travessias pela era dos dinossauros no Ceará.

Demitri Túlio

PTEROSSAUROS DESCRITOS DA BACIA DO ARARIPE

 

Família Anhangueridae

Anhanguera piscator (Kellner e Tomida, 2009)

Anhanguera blittersdorffi (Campos e Kellner, 1985)

Anhanguera spielbergi (Veldmeijer, 2003)

Anhanguera santanae (Wellnhofer, 1985)

Anhanguera araripensis (Wellnhofer, 1985)

Maaradactylus kellnerii (Bantim, Saraiva, Oliveira e Sayão, 2014)

Tropeognathus mesembrinus (Wellnhofer, 1987)

Cearadactylus ligabuei (Dalla Vecchia, 1993)

Cearadactylus atrox (Leonardi e Borgomanero, 1985)

Família Pteranodontoidea

Brasileodactylus araripensis (Kellner, 1984)

Família Ornitocheiridae

Barbosania gracilirostris (Elgin e Frey, 2011)

Ludodactylus sibbick (Frey, Martill e Buchy, 2003)

Arthurdacttylus conandoylei (Frey e Martil, 1994)

Família Ctenoschamatoidae

Uwindia trigonus (Martill, 2011)

Família Tapejaridae

Tapejara wellnhoferi (Kellner, 1989)

Tupuxuara longicristatus (Kellner e Campos, 1988)

Tupuxuara leonardii (Kellner e Campos, 1988)

Tupuxuara deliradamus (Wilton, 2009)

Lacusovagus magnificens (Wilton, 2008)

Tapejara navigans (Frey, Martill e Buchy, 2003)

Thalassodromeus Sethi (Kellner e Campos, 2009)

Tupandactylus imperator (Kellner e Campos, 2007)

Caupedactylus ybaca (Kellner, 2013)

Aymberedactylus cearenses (Pêgas, Leal e Kellner, 2016)

Thalassodromeus oberlii (Headden e Campos, 2014)

Caranguejo do Araripe

(Foto: Fábio Lima/O POVO)
Um caranguejo vivo, de água doce, e encontrado em área de floresta úmida no Geopark Araripe, no Ceará. A descoberta, dos pesquisadores Alysson Pontes, da Universidade Regional do Cariri (Urca), e de Willian Santana, da Universidade do Sagrado Coração (USC), de Bauru (SP), fugiu dos padrões dos achados na Bacia do Araripe. Lugar guardião de um universo paralelo revelado em fósseis de animais, plantas e outras criaturas da pré-história do planeta.
kingleya attenboroughi ou “caranguejo do Araripe”, já encontrado em risco de extinção em dois riachos de Barbalha, é outra janela para prováveis explicações e ensinamentos sobre a relação entre o esgotamento de reservas de água, destruição de florestas no Semiárido e o desaparecimento de espécies. O crustáceo foi descrito no artigo científico “Uma nova e ameaçada espécie de Kingsleya Ortmann, 1897 (Crustacea: Decapoda: Brachyura: Pseudothelphusidae) do Ceará, Nordeste do Brasil”.
(Foto: Fábio Lima/O POVO)
Por falar em perda de biodiversidade, pelo menos sete fósseis de crustáceos da Bacia do Araripe foram descritos até hoje. São quatro camarões e três caranguejos descobertos na Chapada do Araripe entre o Ceará e Pernambuco. Dois caranguejos apresentados à comunidade científica este ano, o Exucarcinus gonzagaieRomualdocarcinus salesi.
O biólogo, pós-doutor pelo Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo e atual diretor do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, Alysson Pontes Pinheiro, dialoga sobre o que pode significar a ocorrência do kingleya attenboroughi bem longe do mar e a possível ligação com floresta Amazônica. Além de contar também sobre outra pesquisa que faz uma ponte entre o Geopark Araripe à fósseis encontrados no gelo da Antártica.
O POVO – O senhor e o professor Willian Santana descobriram um caranguejo de água doce num ambiente de floresta úmida, no Geopark Araripe, o kingleya attenboroughi. Em que fase está a pesquisa?
Allysson Pontes – O Kingsleya attenboroughi foi descoberto há pouco mais de três anos (abril de 2016) em riachos do distrito de Arajara, no município de Barbalha. Em sua descoberta alertamos para a previsão de que o caranguejo deveria já estar em risco de extinção. Desde estão tentamos obter maiores informações sobre o animal e desenvolvemos trabalhos de pesquisa junto às comunidades sobre os usos do caranguejo para avaliar os impactos sobre sua distribuição para compreender onde ele de fato está presente e quais os riscos e o que favorece sua presença.

OP – A pesquisa também se estende a cativeiro?

Allyson Pontes – Sim. Os estudos sobre os comportamentos em cativeiro iniciando o que seria uma tentativa de reprodução para repovoar a região. Em cativeiro, a espécie consegue desenvolver seus comportamentos satisfatoriamente, inclusive, com cópula documentada embora ainda não tenhamos conseguido reproduzi-lo. As observações devem orientar a educação ambiental, mostrando a importância do animal para o ambiente. O papel dele e como a presença do caranguejo pode, inclusive, ser benéfica às comunidades. Hoje, o que sabemos é que as comunidades, praticamente, desconheciam a presença do animal sem nenhum uso específico.

OP – O caranguejo está em todos os leitos de água doce de Barbalha?

Allyson Pontes
 – O que sabemos é que ele está presente em apenas dois riachos da região. O que é pouquíssimo e confirma seu status inicial de em perigo de extinção, afetado especialmente pela redução dos corpos hídricos e expansão imobiliária. A população mais próxima da área de ocorrência tem respondido positivamente às conversas sobre a necessidade de preservação do animal e boas iniciativas, inclusive, de empreendimentos privados próximos ao local de ocorrência têm surgido.

OP – O que significa a presença dele no Geopark Araripe?

Allyson Pontes – Do ponto de vista da ciência, a descoberta nos ajuda a entender a história da evolução do clima e da paisagem da América do Sul. O caranguejo faz parte de um grupo amazônico, essa informação confirma que, ao longo da história do planeta, as variações do clima fizeram com que, em algum momento, a floresta Amazônica se estendesse até o que é hoje a Chapada do Araripe. Outra informação interessante e importante é que, possivelmente, os riachos onde o Caranguejo do Araripe é encontrado são os únicos que permaneceram com água continua dezenas de milhares de anos, período estimado do fim da última glaciação.

OP – Essa espécie de caranguejo já foi abundante no Ceará?

Allyson Pontes – Não se tem dados precisos sobre a abundância histórica do caranguejo do Araripe, mas, após a descoberta, várias pessoas relataram que em décadas passadas ele teria uma ocorrência bem maior do que a atual na região. Os motivos da diminuição devem estar relacionados com o aquecimento do planeta, secas mais frequentes, expansão imobiliária e tudo isso se relaciona com a disponibilidade de água. Estamos inseridos em uma matriz semiárida onde água, por definição, tende a ser cada vez mais rara.

OP – O perigo de extinção do caranguejo é mais um alerta sobre a recarga d´água no Cariri cearense?

Allyson Pontes – Há diversos estudos que mostram que a região do Cariri, apesar de ainda representar um oásis no meio ao sertão, tem sofrido com disponibilidade cada vez menor de água. Há baixa recarga dos mananciais e risco de colapso em um horizonte temporal curto. Com cada vez menos água, maior tende a ser pressão sobre a água disponível. Dessa forma, de alguma maneira, a presença do caranguejo do Araripe e sua preservação na região estão ligadas diretamente à sobrevivência do próprio homem na região. Matas preservadas resultam em melhor recarga. O que garante água corrente e traz a condição de sobrevivência do caranguejo. Também a poluição pode ser um problema, mas o mais urgente hoje é ter água nos rios.

OP – O senhor, juntamente com o paleontólogo Álamo Saraiva, está descrevendo um fóssil de lagosta na Antártica. Que espécie é essa?

Allyson Pontes – Estamos colaborando com o Museu Nacional em um projeto que estuda fósseis da Antártica. Foi coletado bastante material de crustáceos que está sendo analisado e, em breve, deveremos apresentar novidades. O material analisado é um pouco mais recente do que o do Araripe, cerca de 70 milhões de anos. Não posso adiantar mais detalhes até que o achado tenha sido cientificamente aceito.

OP – Por qual motivo os pesquisadores do Geopark Araripe foram convidados para integrar a pesquisa?

Allyson Pontes – Fomos convidados a compor a equipe do Museu Nacional em virtude da experiência comprovada pelo grupo da Universidade Regional do Cariri em trabalhar com crustáceos fósseis. Ainda são poucos os pesquisadores brasileiros que se dedicam a este grupo fóssil. O projeto do Museu Nacional chama-se PaleoAntar. É coordenado pelo atual diretor do Museu Nacional, o professor Alexander Kellner, que é colaborador de longa data da Urca e do Geopark Araripe. O Projeto está em pleno desenvolvimento, já ocorreram quatro idas ao continente gelado, das quais uma eu tive a oportunidade de participar. Muito material foi coletado e trazido para o Museu Nacional. O projeto tinha foco inicial em vertebrados fósseis, especialidade do professor Kellner. No entanto, foi ampliado para contemplar outros aspectos em virtude da quantidade e qualidade do material encontrado.

OP – O senhor é o novo diretor do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri. O que falta para o Museu ser referência no mundo já que está na Bacia do Araripe?

Allyson Pontes – O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens tem um potencial extraordinário em virtude da quantidade e qualidade de seu acervo. São 6 mil peças catalogadas de diversos grupos e atualmente temos 17 holótipos. O holótipo é aquela peça que dá nome a uma espécie descrita. Em qualquer museu esse é o material mais importante. O museu tem crescido em visibilidade e importância, haja vista o destaque recente no carnaval carioca. Cresce anualmente em visitação. Ano passado foi visitado por 36 países e este ano registramos 20 países. Em importância científica, atualmente temos um pesquisador chinês com bolsa da Funcap para trabalhar com pterossauros e um aluno de doutorado português que fará uma tese com aproveitamento do rejeito da pedra Cariri. Para continuar avançando precisamos continuar ganhando respeito científico com colaborações entre instituições e pesquisadores. Ainda este ano, devemos assinar um convênio com a China para colaboração científica, da mesma forma com o Senckenberg Institute da Alemanha. Além de uma colaboração, cada vez maior, com o Museu Nacional e o Museu de Zoologia da USP.

CRUSTÁCEOS DESCRITOS NA BACIA DO ARARIPE

Camarões

Beurlenia araripensis (Martins Neto e Mezzalira, 1991)

Paleomattea deliciosa (Maisey e Carvalho, 1995)

Kellnerius jamacaruensis (Santana Pinheiro, da Silva Saraiva, 2013)

Araripenaeus timidus (Pinheiro, Saraiva e Santana, 2014)

Caranguejo

Araripecarcinus ferreirae (Martins Neto, 1987)

Exucarcinus gonzagai (Ludmila Cadeira do Prado, 2019)

Romualdocarcinus salesi (Ludmila Cadeira do Prado, 2019)

O QUE VISITAR NO GEOPARK

O peregrino que quiser se aventurar pelas trilhas oficiais do Geopark Araripe, primeiro das Américas e único no Brasil chancelado pela Unesco, terá avistamentos surpreendentes no Cariri cearense. O geoparque é um lugar de turismo científico, de aventura e religioso nos nove geossítios, situados em seis municípios. Por enquanto!

Território sustentável

Reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca), Francisco Lima Júnior, afirma que ”não se faz desenvolvimento sustentável a curto prazo. Leva tempo”. No Geopark Araripe falta afinar a gestão com as prefeituras

“O Geopark Araripe não é um parque de diversões fechado para visitação turística”. Quem diz é o reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca), Francisco do O’ de Lima Júnior, membro da Equipe do Araripe Geopark Mundial da Unesco, doutor em Desenvolvimento Econômico e professor do Departamento de Economia da Urca. A afirmação foi uma resposta a questionamento sobre a falta de estrutura para o recebimento de visitantes na maioria dos nove geossítios visitados pelo O POVO. Onde não há locais para alimentação, hidratação simples, banheiros e segurança no lugar.

Em entrevista por e-mail, ele explicou que o equipamento, criado e chancelado pela Unesco em 2006, “é um território que envolve toda extensão de seis municípios e dentro deles há espaços para visitação monitorada e acompanhada pela gestão do Geoapark Araripe. Alguns de iniciativa privada”, detalhou.
O reitor, que também é pesquisador líder do Grupo de Pesquisa em Territorialidades Econômicas e Desenvolvimento Regional Urbano do Getedru/DE-Urca, afirmou que em alguns sítios não é permitido ter restaurante. Como, por exemplo, o Parque Estadual Sítio Fundão que “é uma unidade de conservação (UC) e ao mesmo tempo um geossítio”. Lá, como O POVO testou, abrange uma área do geossítio Batateiras (Crato) e há segurança e estrutura de portaria por se tratar de uma UC estadual consolidada.
Outros equipamentos, parceiros do Geopark, “estão preparados para visitação, banho, alimentação e hospedagem para mil pessoas por final de semana”, informou o reitor da Urca. Ele cita como exemplo, o Arajara Park, em Barbalha. Um clube serrano particular e que está dentro do projeto de desenvolvimento sustentável sugerido pela existência de um geoparque no Cariri cearense.
Outros sítios em razão de fragilidades naturais e possibilidade de degradação, observou Lima Júnior, só podem ser visitados com agendamento para se controlar os impactos nos registros rochosos. É o caso da Floresta Petrificada, geossítio localizado em Missão Velha e desenhado em uma “área de pesquisa e de interpretação ambiental”. O visitante, orienta o gestor da Urca, pode “acessar o site do Geopark Araripe ou agendar por telefone (88)3102 1237).
Para Lima Júnior, também professor do Programa de Mestrado em Planejamento e Dinâmicas Territoriais do Semiárido da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), “não se faz desenvolvimento sustentável a curto prazo. Leva tempo”. Ele cita, como exemplo, a pendência na definição da gestão, com a prefeitura de Barbalha, do geossítio Riacho do Meio.
A área de preservação ambiental oferece como atrativos a observação do Soldadinho-do-Araripe, trilhas e o contato com nascentes e floresta preservadas. “Tem infraestrutura excelente”, escreveu o reitor. No entanto, não possui receptivo nem contava com segurança nas duas ocasiões em que a equipe do O POVO esteve lá.   “Várias audiências estão sendo realizadas e o planejamento estratégico do Geopark Araripe está contemplando essas externalidades”, observou Lima Júnior.
Para a criação do Geopark Araripe em 2006, o primeiro das Américas e o único do Brasil, as prefeituras dos seis municípios se comprometeram a apoiar e gerir equipamentos já existentes em seus territórios. Responsabilidades, lembra o reitor, pactuadas por convênio e destinadas a promover a geoeducação, geoconservação e geoturismo.
A existência de fósseis na Bacia do Araripe e a possibilidade do contato com interpretações sobre a pré-história levaram O POVO ao Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU), no Crato, e ao Museu Paleontologia de Santana do Cariri. Equipamentos ligados, diretamente, a razão de existir o Geopark.
No LPU, de onde saem pesquisas importantes sobre a transformação do planeta, não tem estrutura adequada para preparação e descrição dos fósseis. No prédio pequeno, paleontólogos e estudantes se apertam entre mesas, prateleiras e pedras sem acondicionamento apropriado.
De acordo com o reitor Francisco Lima Júnior, “o Laboratório de Paleontologia da Urca é da Urca, não do Geopark Araripe”. Durante a visita de dois avaliadores da Unesco, no mês passado, segundo o gestor, foram apresentados os laboratórios de paleontologia do Museu de Santana do Cariri. Que têm como curador o coordenador LPU, professor Álamo Saraiva.
A Urca, reconhece Lima Júnior, precisa contratar novos professores para compor o quadro de paleontólogos. “A demanda já foi solicitada ao governador do Ceará (Camilo Santana)”, disse. E, completou o reitor, “já está agendada para este ano, a reforma no atual espaço do LPU no Campus do Pimenta 2 (Crato), que será aumentado em 100% e acolherá aulas com outros professores do curso de Biologia e Educação”.
Lima Júnior afirmou ainda que o LPU conta com o “maior acervo de equipamentos e três bolsas de pesquisa”. Além disso, também são partes do LPU os “três laboratórios no Museu de Paleontologia de Santana do Cariri vazios, sem uso destinado para esse grupo de pesquisa”. Ainda no Museu, “três salas foram reformadas para acolher as pesquisas e os pesquisadores do LPU.
O projeto de reforma do LPU, no Crato, “tem um plano de reforma e ampliação aprovado pela Reitoria da Urca com financiamento do projeto da construção da Transnordestina”. A Urca, explicou Lima Júnior, está com a guarda do acervo arqueológico recolhido na obra da rodovia. “Mas os recursos ainda não foram liberados”, informou.
Demitri Túlio

 

OS LABORATÓRIOS

Há diferenças entre os laboratórios do Museu de Paleontologia, em Santana do Cariri, e o Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU). Álamo Saraiva, coordenador do LPU, explica que os equipamentos do Museu contam apenas com máquinas de preparação mecânica e lupas para auxiliar os pesquisadores e estudantes que vão até Santana ver um determinado grupo de fósseis para complementar pesquisa.

Já o LPU é o espaço para pesquisas e contam com aparelhos de preparação mecânica e química, material de apoio para trabalhos de campo, microscópios e microscópio eletrônico. “Não é dispensável dizer que os alunos de Biologia estão no campus Pimenta (Crato), onde está o LPU. É impossível, sem transporte diário, os estudantes desse campus desenvolverem atividades em Santana, que está a 53km do Museu”, observa Álamo Saraiva.

Família de ex-peixeiros

O projeto Geopark Araripe pode mudar a trajetória de algumas escritas enviesadas. O tráfico de fósseis, por exemplo, foi interrompido na história de uma família em Santana do Cariri

(Foto: Fábio Lima/O POVO)

Em uma mata de transição de Caatinga, no Parque dos Pterossauros, Antônio Araújo Ferreira, 55, vai e volta na infância em Santana do Cariri. Entre as recordações, as histórias marcantes do pai, Bonifácio Malaquias Ferreira, já falecido. Um agricultor que, por necessidade, falta de informação e demanda constante de traficantes de fósseis à porta, largou a roça para cavar e vender fósseis para contrabandistas de “passado”.

É Araújo quem conta ter vindo de uma “família de peixeiros”. Era “o avô, o pai, os tios”, os vizinhos. “Cresci vendo eles arrancarem fósseis para vender aos homens que passavam perguntado pelas pedras. Assuntando se tinha encontrado alguma coisa nos terrenos das plantações. Antigamente tinha mais essa coisa clandestina”, relembra.
“Peixeiro”, na definição de quem nasceu e se criou na Bacia do Araripe, eram muitos moradores e forasteiros que saiam cavando o solo da Chapada atrás de encontrar “pedras de peixes”. Fósseis comuns da Formação Romualdo, uma das camadas geológicas onde estão assentados o município de Santana do Cariri e quase todo o território do Gepark Araripe. Lugar testemunho de que o sertão, na pré-história, já foi mar. E teve grandes lagos de água salgada ou doce, abundantes de vida e ressurgências.
Por causa de algum evento ambiental impactante na Terra, há milhões de anos, tudo que era bicho, tudo que era planta, pterossauros, camarões, pólen, aves, dinossauros, rãs, libélulas, tartarugas, tubarões… morreram e uma parte foi se arquivando na pedra.
Fossilizando-se. “Você imaginar coisa assim, a natureza? Eu tinha doze anos, quando ia levar almoço, café, pra meu pai, meus tios, meu avô e via eles carregam sacos com 50, 60, pedras de peixes”, reaviva Araújo.
(Foto: Demitri Túlio)
Seu Bonifácio ou Bone, rememora o filho, teria despertado para o comércio clandestino de fósseis depois que um traficante o abordou interessado em catar “umas pedras” num roçado de pré-estação, entre o verão e a espera por inverno bom. “Depois que o homem saiu, meu pai pegou uma daquelas pedras e foi batendo, batendo nela, e pou! Se abriu em bandas e ele descobriu um peixe lindo. Tava descoberto o mistério das pedras que o homem caçava”, recapitula das conversas que ouviu na infância.
De 1961 até um pouco antes de falecer, em 2011, seu Bone cavucou atrás de fósseis o quanto deu. Reconhecido como um exímio escavador, conhecedor leigo das camadas geológicas e a identificação de quais tipos de fósseis estariam depositados ali, acabou sendo convidado por paleontólogos da Universidade Regional do Cariri (Urca) para fazer parte das escavações científicas.
“No começo, ele desconfiou”, revive Araújo. “Chamar um homem que vendia fósseis na praça, nas esquinas de Santana? Uma coisa que era ilegal, proibido?”. Mas depois aceitou. E nas idas para as escavações no geossítio do Parque dos Pterossaros, agora para ensinar paleontólogos enrolados na teoria e pouca prática de campo, levava o filho Araújo a tiracolo.
Foi desse jeito que Antônio Araújo Ferreira acabou se “desenveredando” do rumo do tráfico de fósseis. Era o destino, reconhece o hoje funcionário terceirizado do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri e um dos escavadores do Parque dos Pterossauros. Há dez anos, Araújo ganha um salário pelo ofício que desempenha no Geopark Araripe.
Na boca de Araújo, Geopark Araripe tem pronúncia diferente. É significado de outros tempos, de alguma perspectiva para o turismo e outras atividades contra o tráfico de fósseis na Bacia do Araripe. O ganho de dinheiro ainda é pouco para o escavador, mas complementa a renda da família de Araújo, que cria “umas galinhas, uns porcos e outras criações”. A esposa estuda e trabalha e os três filhos estudam.
(Foto: Demitri Túlio)
As histórias de seu Bonifácio não “desorgulham” o moço já feito, que foi criado vendo o avô e os tios acharem as deslumbrantes “pedras de peixes”. Tinham valor, mas os atravessadores e traficantes de fora eram os que mais sabiam especular com os fósseis para colecionadores, cientistas brasileiros e estrangeiros e museus renomados no mundo. “Meu pai sabia que tinha importância, mas saia barato. Nunca se endinheirou”, ressente Araújo.

Não sai da memória de Araújo o dia em que o pai achou “cinco rodas (talvez vértebras) de um pterossauro”. Nem quando cavou uma pedra em formato semelhante de um “pedúnculo de caju”. Os traficantes cresceram os olhos e caíram em cima para levar, era incomum em meio ao oceano de “pedra de peixe”. O suposto pterossauro, recorda, foi vendido por “uns contos. Quem comprou, depois, revendeu por R$ 60 e outro repassou por R$ 600. E quanto não terá custado no estrangeiro?”, se pergunta Araújo.

PARQUE DOS PTEROSSAUROS

– O Parque dos Pterossauros fica no Sítio Canabrava, em Santana do Cariri, há 521 km de Fortaleza (CE). São 18,2 hectares de Caatinga onde se pode escavar para prospecções paleontológicas.

– A propriedade, segundo Álamo Saraiva, do Laboratório de Paleontologia da Urca, foi doado por um empresário norte-americano.

– Desinformado sobre as leis no Brasil contra o tráfico de fósseis, o empresário teria comprado o sítio na década de 80 para levar fósseis daqui e vendê-los nos EUA, onde o comércio é legal.

– Nos EUA, segundo Álamo Saraiva, teria deixado o comércio de peixe vivo para se dedicar a busca por “pedras de peixes” encontradas na “inóspita” Santana do Cariri.

– Preso com uma carga de fósseis, teria conseguido provar que desconhecia a ilegalidade. Descontente, teria resolvido doar as terras para a Urca.

– No dia em que estivemos no Parque dos Pterossauros havia uma escavação de 5m x 5m. Uma sala de aula a céu aberto, onde se encontram 5,2 fósseis por cada metro cúbico de sedimento. Há níveis com 15 exemplares.

Dois universos paralelos

Os sítios Santa Fé e Caldeirão do Deserto da Santa Cruz, no Crato, contam outras histórias, além da paleontologia, sobre a formação do povo Cariri. Os dois aguardam o selo de geossítio

(Foto: Fábio Lima/ O POVO)

Depois de uma pequena trilha de 700 metros e uma entrada à esquerda após a cerca de sabiás, um paredão de arenito na mata fechada tem segredos. Pinturas e esculturas rupestres, provavelmente, de tuiuiús, de uma serpente e de outros enigmas desenham partes da rocha gasta. Bem por ali, supostamente, entrançaram indígenas seguindo o caminho das águas do Cariri. Povos que habitaram ou atravessaram o Sul do Ceará antes das invasões europeias, no século XVII.

Por ali também, se demorou a arqueóloga Rosiane Limaverde, da Fundação Casa Grande e do Memorial do Homem Kariri. Pesquisou e tentou decifrar quais outros passados nos fizeram na diversa Chapada do Araripe. O Sítio Santa Fé, onde a coleção de desenhos rupestres registra parte desse labirinto arqueológico, aguarda validação do Geopark Araripe e da Unesco para se transformar no mais novo geossítio da região.
O Sítio de nove hectares, distante 23 km da sede de Crato, foi comprado pelo empresário Demétrio Jereissati, 59. Dono do Iu-á Hotel, sediado em Juazeiro do Norte, Jereissati enxergou no Santa Fé a possibilidade de estender a oferta de turismo sustentável aos clientes e contribuir com formação educacional e profissional diferenciada de crianças e jovens da Fundação Casa Grande, em Nova Olinda.
Na Casa Grande, meninos e meninas de Nova Olinda, de cidades do entorno e até de lugares mais longe do Cariri compartilham vivências de gestão cultural tecidas por cadeiras de memória, de arqueologia inclusiva, da história do homem do Cariri, de música, de paleontologia, da comunicação e do empreendedorismo juvenil.
Será uma parceria entre a iniciativa privada e empreendedores sociais da comunidade, como sugere um dos conceitos do território geoparque. Quando o geossítio for realidade, conta Demétrio Jereissati, a Fundação Casa Grande administrará o equipamento. E o destino Santa Fé entrará na rota dos passeios ofertados pelo Iu-á Hotel.
Por enquanto, observa Pajé ou Antônio José Bezerra, 41, um dos guias de turismo do Iu-á Hotel, o patrimônio arqueológico descoberto por Rosiane Limaverde, falecida em 2017, passará por estruturação para garantir a proteção das pinturas rupestres e da mata.
(Foto: Fábio Lima/ O POVO)
De Santa Fé, a bordo do “doblossauro”, veículo que tem uma réplica gigante de um pterossauro no teto, seguimos para o Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, também no Crato. Da mesma forma, aguarda do Geopark Araripe o selo de geossítio. São nove até agora.
No Caldeirão, o patrimônio é mais imaterial do que edificado ou registrado em rochas. Uma igreja branca e azul, um cemitério com cruzes de madeira atrás do templo, um casebre e ruínas de outras construções restaram de um bombardeio em 1937.
Foi quando o Exército do anticomunista Getúlio Vargas e a Polícia Militar do Ceará, “culiados” com a cúpula da igreja Católica de Crato e de Fortaleza, invadiram o povoado e mataram centenas de pessoas, falam em 400, 800 ou mil.
Como os “vencedores” são os primeiros a escrever a história “oficial”, não há lista dos mortos e desaparecidos da comunidade fundada pelo beato Jose Lourenço. Um preto paraibano, filho de alforriados que veio para o Ceará a convite do Padre Cícero Romão Batista.
O padre, liderança religiosa e política do Cariri, concedeu ao beato José Lourenço o direito de abrigar no Sítio Caldeirão levas de famílias de retirantes, de agricultores explorados por coronéis do Nordeste, de rezadeiras, de pobres e devotos do “padim”.
Teria dado tão certo a vida em comunidade e a divisão da produção agropastoril, que os ensinamentos messiânicos do beato incomodaram as elites políticas e religiosas do Cariri, de Fortaleza e do Rio de Janeiro.

Do dia para noite, foram acusados de “comunistas”, além de fanáticos do Padre Cícero. E, sob o pretexto da ameaça de uma nova Canudos de Antônio Conselheiro, Getúlio Vargas mandou acabar com o Caldeirão, em 1937. O Exército nega o massacre, mas há registro em jornais da época.

Demitri Túlio
SOBRE O SÍTIO CALDEIRÃO

37 KM
É a distância do Sítio Caldeirão para a sede do Crato. O nome “caldeirão” seria por causa de uma queda d´água em um acidente rochoso semelhante a uma panela grande2008
ONG cearense SOS Direitos Humanos pediu na justiça a identificação dos descendentes dos mortos no Caldeirão. A ação foi arquivada1987
Ano do lançamento do documentário Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, do cineasta Rosemberg Cariry

Onde fé e a ciência se encontram

Na Colina do Horto, o geossítio é o encontro de um evento geológico da Chapada do Araripe com as manifestações da cultura da fé

(Foto: Fábio Lima/O POVO)

De Marechal Deodoro, no agreste alagoano, João Batista da Silva, 56, veio ter com a memória perpétua de padre Cícero, em Juazeiro do Norte. A crença de que o “padim” o fez voltar a andar, “depois de um ano paralítico”, virou paga de promessa perene pela “graça alcançada”. Enquanto viver e as pernas aguentarem, projeta João Batista, ele trará o corpo agradecido à “terra santificada” pelo padre milagreiro, por Mãe das Dores, pela beata Maria de Araújo, pelo beato José Lourenço e por uma nação de romeiros que se renova na oralidade no Nordeste e numa tenência de credo em família.

A primeira vez de João Batista a Juazeiro do Norte foi puxado pelas histórias e a devoção da avó, Maria Joana da Conceição, hoje falecida, e que fez a pé uma das viagens de Joaquim Gomes (Alagoas) até o Cariri cearense. Já vinha na bagagem dela, desde menina, as romarias narradas pela mãe.
Quando nos encontramos, em julho deste ano, era o mês dos 85 anos do “encantamento” do padre Cícero e a trigésima vez que João Batista retornava a Juazeiro. Como de costume, repetia o caminho no Santo Sepulcro, lugar onde padre Cícero se recolhia para se aquietar. Uma trilha penitente de 3 quilômetros, no geossítio Colina do Horto, peregrinada por pagadores de promessa, devotos e turistas.
É ali, naquele enclave de religiosidade que o Geopark Araripe se inseriu, desde 2006, no Sul do Ceará. Onde a fé e a ciência se encontraram para justificar a relevância da criação de um geoparque da Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Um território simbólico e ao mesmo tempo científico.
(Foto: Fábio Lima/O POVO)
As rochas mais antigas da Bacia do Araripe afloraram até o alto do geossítio da Colina do Horto, em Juazeiro. “São pedras magmáticas, originadas há cerca de 650 milhões de anos”, detalha Álamo Saraiva, coordenador do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU). “Aqui, não há ocorrência de fósseis como em Santana do Cariri e Nova Olinda”, compara Flaviana Costa, também paleontóloga do LPU.
São rochas “ígneas (no caso o granito) formadas a partir do resfriamento do magma. Por isso é impossível conservar alguma coisa orgânica. Os fósseis se preservam em rochas sedimentares como o calcário e o arenito”, explica a paleontóloga e professora da Urca.
João Batista pouco sabe dizer sobre o valor geológico do assoalho rochoso onde está sentada aquele trecho de peregrinação, na Bacia do Araripe. Sabe da estátua gigante do padre Cícero que mira o Vale do Cariri lá embaixo. E, sim, vê rochas exageradas que o acompanham no percurso de ida e volta do caminho do Santo Sepulcro.
Ele confessa nunca ter se perguntado por que tanta pedra na estrada de chão alaranjado, aberta no meio de uma Caatinga preservada. Há uma rocha, inclusive, recomenda o funcionário público, com uma fenda estreita no meio e por onde os devotos do padre Cícero se espremem para atravessar. É a “pedra do pecado”. E os que se entalam no apertado das paredes é porque estão cheios de culpa. Não haveria relação com a compleição física de cada um ou um provável sedentarismo. É a parte brincante da escrita do maravilhoso costurada às manifestações da fé no desenho geológico do lugar.
(Foto: Fábio Lima/O POVO)
Pelo trajeto do Santo Sepulcro, outra curiosidade. Várias pedras pequenas e médias são penduradas nos galhos das árvores, empilhadas na beira do caminho ou postas nas placas de orientação. Há também centenas delas deixadas em cima das rochas gigantes, formando miúdos e grandes totens. Uma assinatura de quem passou pelo sacrário telúrico da Colina do Horto.
Damião Francisco da Silva, 34, tem uma venda de água, salgadinhos, raízes, mel, cabaças e outras ofertas em uma das paradas do caminho. Os seixos deixados pelos peregrinos teria haver com a expiação das faltas graves cometidas pelos arrependidos até a próxima ida a Juazeiro. “Dizem que quanto maior o pecado, maior é a pedra deixada”, ouviu dizer o comerciante.
Antes de ser geossítio, na Colina do Horto, já havia a trilha indo dos pés da estátua de padre Cícero até a coleção de pedras magmáticas do Santo Sepulcro. Mas, remonta Damião Francisco, o comércio era acomodado em “barracas de lata e taipa”. Quando o Geopark Araripe pediu passagem e se incorporou ao forte traço da cultura religiosa entrançada em Juazeiro do Norte, a montanha onde o “padrim vive e não está morto” agregou outras percepções.

“Eu não sei explicar direito o que é Geopark. Mas depois dessa proteção, é uma proteção, né? Hoje, tem banco pra o romeiro se sentar. Muita placa e as nove barracas, agora, são de tijolos. Ficou mais organizado”, observa Damião Francisco. Um cearense, filho de mãe paraibana e pai juazeirense. “Minha mãe veio com meus avós para uma romaria aqui e acabaram ficando pra morar”, biografa o homem do Cariri.

Demitri Túlio

 

ESTÁTUA DO PADRE CÍCERO

27 metros é altura da estátua de padre Cícero. Esculpida por Armando Lacerda em 1969.

7 metros era o tamanho inicial proposto para o monumento ao padre e líder político, falecido em 1934.

50 anos tem a estátua do padre Cícero. Em seu entorno, há um museu, uma igreja e muito comércio.

FONTE: Especiais  O POVO 
Link: https://especiais.opovo.com.br/geoparkararipe/

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *