O Geopark Araripe, da rede global de geoparques da União das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), é um laboratório de possibilidades e descobertas para o Cariri cearense, o Brasil e para o Planeta. Não é exagero. No sul do Ceará, a Unesco resolveu apostar na reverberação sobre a relevância geológica dali para compreensão das reviravoltas ambientais da Terra há milhões de anos e suas atualizações. Uma aposta, também, na insistência por um ser humano transformador do lugar de existência, por destinos sustentáveis, com repercussões do quintal para Casa Comum.
Do fóssil ao homem, a Chapada do Cariri tem biografia singular e universal. Há 13 anos, foi incluída na rede de geoparques da Unesco como um dos 127 territórios ativos para, por exemplo, exercitar a consecução dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas.
O Geopark Araripe, administrado pela Universidade Regional do Cariri (Urca) e o único no Brasil, já é reconhecido como “bom exemplo de intervenção territorial focada na proteção e promoção do patrimônio natural e cultural colocados a serviço dos habitantes e visitantes que o demandam”. A observação é do professor lusitano Artur Agostinho Sá de Abreu, coordenador da Cátedra Unesco em Geoparques, Desenvolvimento Regional Sustentável e Estilos de Vida Saudável da Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro (Utad) e do Geoparque Arouca, de Portugal.
Há desafios em quantidade e a necessidade de correções de percursos no manejo territorial nos nove geossítios esquadrinhados em seis municípios do Cariri. Uma das urgências é o envolvimento radical das prefeituras com o conceito e a prática da ideia do Geopark (Unesco) Araripe. Entender que a parceria é próspera e tem perspectiva sustentável para o cidadão em seu habitat, para o visitante, o meio ambiente e a economia da região.
A seguir, um convite ao leitor para uma visita guiada ao “Destino Geopark Araripe”. Uma viagem pelas narrativas geopaleontológicas da Bacia do Araripe e por enredos sobre o homem e a terra que o habita.
(Foto: Fábio Lima/O POVO)
PERCURSO
2000 mil quilômetros
foi trajeto percorrida pela equipe do O POVO, de Fortaleza ao Geopark Araripe no Sul do Ceará
3.796 km²
é o tamanho do território do Geopark Araripe, esquadrinhado em nove geossítios nos municípios de Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Missão Velha, Santana do Cariri e Nova Olinda
92
Geossítios foram mapeados dentro do Geopark Araripe com potencial para experiências de desenvolvimento sustentável. Por enquanto, nove receberam autorização da Unesco
Relicário pré-histórico
As descobertas recentes de fósseis de um crocodilo, um dinossauro e de um novo pterossauro desafiam a ciência no Geopark Araripe e são pontes para o geoturismo
Parte de um crocodilo que viveu entre 199 e 155 milhões de anos, onde hoje se testemunha a bacia do Araripe, é a mais nova evidência científica de que o Cariri cearense tem um universo paralelo. A relíquia, uma vertebra e outras interrogações investigadas por pesquisadores do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU-Urca), deverá indicar que o réptil é o mais antigo fóssil do gênero descoberto no Brasil.
O rastro do crocodilo do jurássico, conta o paleontólogo Álamo Saraiva Feitosa, continua sendo seguido em escavações no solo de Missão Velha – um dos seis municípios que esquadrinham o território do Geopark Araripe, no Ceará. A busca é uma tentativa de achar o restante dos fragmentos do corpo da criatura pré-histórica que, já se sabe, era de água doce e pode ter medido entre 2 e 2,5 metros de tamanho. Um vertebrado mediano para uma era de criaturas gigantes.
É um quebra-cabeça iniciado há milhões de anos na Terra e que encontra na bacia do Araripe encaixes importantes para se entender as transformações do mundo até aqui. “O fóssil precioso de um crocodilo ou de outro organismo nos ajuda a remontar um sistema do passado para estabelecer pontes e incursões com cenários atuais”, simplifica Álamo Saraiva – coordenador do LPU. É uma autopsia do paleoambiente do animal arquivado na rocha para se saber a evolução e extinção de espécies.
Até hoje, das entranhas da bacia do Araripe foram descritas três espécies de crocodilomorfos. Em 1959, o paleontólogo gaúcho Llewellyn Ivo Price batizou a primeira pedra de fóssil desse vertebrado: o Araripesuchus gomesii. Seguido, em 1987, pelo Caririsuchus camposi – descoberta de Alexander Kellner, atual presidente do Museu Nacional. E em 2003, o inglês David Martill e mais três cientistas deram nome e reconstituíram prováveis hábitos do Susisuchus anatoceps.
Há, fora da Cariri cearense, apenas dois fósseis associados às características do Araripesuchus gomesii. Pedras coletadas ou traficadas da bacia do Araripe. É um crânio quase inteiro e uma mandíbula que fazem parte da coleção do antigo Departamento Nacional de Produção Mineração (atual Agência Nacional de Mineração), no Rio de Janeiro. E o fóssil de um crocodilo juvenil, parcialmente completo, depositado no American Museum of Natural History, em Nova Iorque (EUA).
No próximo mês, revela Álamo Saraiva, um artigo científico sobre o crocodilo do jurássico do Geopark Araripe será compartilhado pela revista Plos One. Uma plataforma online da Public Library of Science especializada em discussões sobre descobertas na ciência e na medicina.
Por enquanto, os detalhes sobre o achado e suas contribuições para o labirinto da história natural do planeta pedem discrição científica e sigilo. Há mais dúvidas do que respostas, completa Álamo Saraiva. “E isso é bom”, afirma o cientista contra certezas traiçoeiras para a ciência que estuda vestígios do passado a partir de fósseis de bichos, micro-organismos, plantas e outras chaves para explicar existência.
Nas mesas do minúsculo e importante Laboratório de Paleontologia da Urca, cientistas do Ceará e da China se apertam para decifrar também mais três enigmas encontrados na jazida fossilífera do Geopark Araripe.
São fósseis de uma planta quase completa – uma gimnosperma do cretáceo inferior com aproximadamente 115 milhões de anos e garimpada nas pedreiras de calcário laminado de Nova Olinda. Há ainda a perna de um dinossauro, também do cretáceo inferior, escavado em Santana do Cariri. E a cabeça de um pterossauro apreendida pela Polícia Federal das mãos de traficantes especializados em passado.
O novo dinossauro, descoberto desta vez por cientistas do Laboratório de Paleontologia da Urca, se juntará a quatro já descritos da bacia do Araripe. Esta semana, o paleontólogo e diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, desembarcará no Crato para se bater o martelo sobre anos de estudos em torno da espécie.
Alexander Kellner e Diógenes de Almeida Campos apresentaram, em 1996, o Angaturama limai. A criatura, ao lado do Irritator challengeri – descrito e desterrado pelo inglês David Martill, também em 1996 – representaram as primeiras descobertas da família dos spinossaurídeos na América do Sul. São dois dinossauros grandes, segundo Álamo Saraiva. Habitavam, provavelmente, o mesmo ambiente, possuíam focinho bem alongado e dentes desprovidos de serrilhas.
Para Kellner e Álamo Saraiva, os fósseis escavados na bacia do Araripe têm notoriedade reconhecida no mundo dado o nível de conservação. Apesar dos milhões de anos debaixo da terra, apresentam partes de tecido mole – pele, vasos sanguíneos e fibras musculares preservadas em três dimensões.
O Santanarator placidus, decifrado por Kellner em 1999, é uma prova do incomum para a paleontologia e gatilho para o tráfico de peças raras saqueadas do Cariri cearense. O Mirischia asymmetrica, levado para ser descrito na Inglaterra por Darren Naish, em 2004, é outro exemplo.
A espécie, que poderia fazer parte da coleção do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, possui “estruturas moles de parte do intestino”, pronunciada assimetria dos ossos da cintura pélvica e um possível saco aéreo pós-púbico, de acordo com Guia de Trabalho de Campo em Paleontologia na Bacia do Araripe.
SOBRE AS ESPÉCIES GIGANTES
PTEROSSAUROS
19 fósseis de pterossauros, escavados na bacia do Araripe no Ceará, foram descritos. O que faz do Geopark Araripe a maior área de descobertas no mundo sobre a criatura alada. Os pterossauros descritos Geopark são de duas famílias: a Anhangueridae, que possuía crista na ponta do bico e dentes grandes. E a Papejaridae, que não tinha dentes e que apresentava uma crista na cabeça (em cima do crânio)
DINOSSAUROS
4 dinossauros, achadas na Chapada do Araripe, já foram descritos até hoje. Uma quinta espécie está em via, sendo investigada. As criaturas são das famílias raptoridae (raptores) e da spinhosauridae (marinhos e com uma grande ”vela” nas costas)
CROCODILOS
3 crocodilos pré-históricos foram descritos na área que hoje conhecemos por Geopark Araripe. Dois de ambiente de água doce e outro de águas salgadas. OAraripesuchus gomesii, o Caririsuchus camposi e o Susisuchus anatoceps
PEIXES
28 espécies de peixes foram descritas na bacia do Araripe, no Cariri cearense
INSETOS
Mais de 200 espécies de insetos foram estudadas por pesquisadores que trabalham com fósseis da Chapada do Araripe, no Ceará
PLANTAS
64 espécies de fósseis plantas, desde samambaias a plantas com flores e frutos, foram descritas no Cariri cearense
MOLUSCOS
10 espécies descritas a partir de escavações na bacia do Araripe, no Ceará. Além de doze ouriços/conchas e 5 cinco camarões
Santuário dos pterossauros
Geopark Araripe tem pelo menos 25 pterossauros descritos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Um novo fóssil do réptil voador está sendo investigado
Provavelmente, a Bacia do Araripe foi uma espécie de santuário de pterossauros. Antes de serem extintos, há pelo menos 65,5 milhões de anos, teriam migrado solitários ou em bandos para se alimentar e, talvez, se acasalar num território inimaginável que se transformou no que aprendemos a chamar de Chapada do Araripe. São hipóteses conversadas com Renan Bantim e Álamo Saraiva, dois pesquisadores do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU).
A possibilidade de ser um refúgio paleoecológico ou de ser um entreposto para alimentação estaria fundada, principalmente, na quantidade de pterossauros descritos originários da Bacia do Araripe, no Cariri cearense. De 1984 para cá, pesquisadores brasileiros e estrangeiros investigaram pelo menos 25 espécies do sul do Ceará que pertenceriam a duas ou mais famílias. Há uma divergência. Os paleontólogos do LPU consideram a Anhangueridae e a Tapejaridae. Outros estudiosos acrescentam a Pteranodontoidea, Ctenoschamatoidae, Ornitocheiridae e a Dsungapteridae.
No Brasil, entre instituições internacionais e entre pesquisadores experimentados em escavar, preparar e decifrar fósseis não se discute o valor paleontológico da Bacia do Araripe. É referência. E se tratando de pterossauro, a jazida fossilífera dessa banda do planeta é ponte para travessias científicas entre os continentes hoje separados e que formaram a Pangeia entre 200 e 540 milhões de anos durante a era Paleozoica.
As incursões de paleontólogos respeitados no universo da pesquisa científica, como as do teuto-brasileiro Alexander Kellner , atual diretor do Museu Nacional e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, confirmam a abundância da região. Ali, crava Kellner, se “encontram dois dos principais depósitos fossilíferos do Brasil e do mundo: as formações Crato e Romualdo”.
Tecido incomum. Em 1984, segundo o Guia para Trabalhos de Campo em paleontologia na Bacia do Araripe, o pesquisador brasileiro Diógenes de Almeida Campos descreveu “a preservação da membrana alar de um pterossauro”. Quatro anos depois, o inglês David Martill “relatou a preservação de fibras musculares, pele e ovário com ovos e restos estomacais em um Rhacolepis”.
Só recentemente, fora dos domínios da Bacia do Araripe, dois pterossauros foram descritos no Brasil. Em 2014, atesta Renan Batim, os paleontólogos Luiz Weinchu e Paulo Manzig, do Centro Paleontológico da Universidade do Contestado (Cenpaleo), e Alexander Kellner publicaram artigo científico revelando o Caiuajuara dobruskii, no Paraná.
Os ossos do Caiuajara foram descobertos por agricultores, em 1971, numa propriedade rural particular em Cruzeiro do Oeste, mas passaram anos confinados em um armário do museu do Cenpaleo, em Santa Catarina. Retomada as pesquisas, foram feitas novas coletas no “cemitério” das ossadas e, finalmente, conseguiram definir a espécie da família dos Tapejaridae.
Do mesmo arquivo do leito de ossos, numa área que no passado foi um deserto, também saíram os fósseis que revelaram o Keresdrakon vilsoni ou “Dragão espírito da morte”. Uma nova espécie de pterossauro, que habitou o Brasil entre 80 e 110 milhões de anos.
O réptil voador foi apresentado neste mês à comunidade cientifica e passou a fazer parte da coleção do Museu da Terra e da Vida, na Universidade do Contestado, em Mafra. No artigo sobre a descoberta, publicado na Revista da Academia Brasileira de Ciências, a assinatura de Renan Bantim e paleontólogos de sete instituições.
Luiz Carlos Weinschütz, coordenador do estudo e professor da Cenpaleo, afirmou que a novo pterossauro provavelmente vivia em pequenos grupos, em áreas desertas, com pouca vegetação e oásis de água. O réptil voador é contemporâneo dos dinossauros, de carnívoros e foi considerado de grandes dimensões, com bico grande e forte.
Os pesquisadores concluíram que o Keresdrakon vilsoni tinha 2,50 metros de envergadura e pesava entre 15 kg e 20 kg. Como o réptil alado não tinha penas, ele teria de ser muito leve para voar e tinha ossos muito finos. “Uma espessura de 1,5 mm”, segundo Luiz Carlos Weinschütz. E era um pouco menor que a maioria dos pterossauros encontrados no Geopark Araripe.
Renan Bantim usou da paleohistologia para auxiliar decifração do “dragão” do Paraná, uma técnica em evidência nas pesquisas mundiais, mas pouco explorada no estudo de fósseis no Brasil. Por causa de sua especialidade e a referência dos achados no Ceará, o paleontólogo já havia participado antes da descrição de 260 ovos de um pterossauro da espécie Hamipterus tianshanensis. Eles foram encontrados no deserto de Hami, no nordeste da China, por pesquisadores chineses do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia da China (IVPP).
“O extraordinário é que continham centenas de ovos, junto com filhotes, embriões, e indivíduos adultos machos e fêmeas, representando uma população de pterossauros que viviam em um oásis”, vibra Bantim, doutor em Geociências pela Universidade Federal de Pernambuco e professor substituto da Urca.
Bantim, Álamo Saraiva e Artur Souza, do LPU, estão tentando abrir novas passagens para a pré-história a partir de estudos inéditos de um crânio quase completo e o bico de um novo fóssil de pterossauro do Geopark Araripe. Será o 26º descrito.
O pterossauro ainda não tem nome. Porém há indícios de que o réptil voador também seja da família dos tapejaridae. Espécie abundante da Chapada do Araripe encontrada, geralmente, na formação Romualdo. O fóssil, regatado em 2017 pela Polícia Federal com a prisão de traficantes especializados, seria uma criatura em idade juvenil. Uma chave inédita para novas travessias pela era dos dinossauros no Ceará.
PTEROSSAUROS DESCRITOS DA BACIA DO ARARIPE
Família Anhangueridae
Anhanguera piscator (Kellner e Tomida, 2009)
Anhanguera blittersdorffi (Campos e Kellner, 1985)
Anhanguera spielbergi (Veldmeijer, 2003)
Anhanguera santanae (Wellnhofer, 1985)
Anhanguera araripensis (Wellnhofer, 1985)
Maaradactylus kellnerii (Bantim, Saraiva, Oliveira e Sayão, 2014)
Tropeognathus mesembrinus (Wellnhofer, 1987)
Cearadactylus ligabuei (Dalla Vecchia, 1993)
Cearadactylus atrox (Leonardi e Borgomanero, 1985)
Família Pteranodontoidea
Brasileodactylus araripensis (Kellner, 1984)
Família Ornitocheiridae
Barbosania gracilirostris (Elgin e Frey, 2011)
Ludodactylus sibbick (Frey, Martill e Buchy, 2003)
Arthurdacttylus conandoylei (Frey e Martil, 1994)
Família Ctenoschamatoidae
Uwindia trigonus (Martill, 2011)
Família Tapejaridae
Tapejara wellnhoferi (Kellner, 1989)
Tupuxuara longicristatus (Kellner e Campos, 1988)
Tupuxuara leonardii (Kellner e Campos, 1988)
Tupuxuara deliradamus (Wilton, 2009)
Lacusovagus magnificens (Wilton, 2008)
Tapejara navigans (Frey, Martill e Buchy, 2003)
Thalassodromeus Sethi (Kellner e Campos, 2009)
Tupandactylus imperator (Kellner e Campos, 2007)
Caupedactylus ybaca (Kellner, 2013)
Aymberedactylus cearenses (Pêgas, Leal e Kellner, 2016)
Thalassodromeus oberlii (Headden e Campos, 2014)
Caranguejo do Araripe


OP – A pesquisa também se estende a cativeiro?
Allyson Pontes – Sim. Os estudos sobre os comportamentos em cativeiro iniciando o que seria uma tentativa de reprodução para repovoar a região. Em cativeiro, a espécie consegue desenvolver seus comportamentos satisfatoriamente, inclusive, com cópula documentada embora ainda não tenhamos conseguido reproduzi-lo. As observações devem orientar a educação ambiental, mostrando a importância do animal para o ambiente. O papel dele e como a presença do caranguejo pode, inclusive, ser benéfica às comunidades. Hoje, o que sabemos é que as comunidades, praticamente, desconheciam a presença do animal sem nenhum uso específico.
Allyson Pontes – O que sabemos é que ele está presente em apenas dois riachos da região. O que é pouquíssimo e confirma seu status inicial de em perigo de extinção, afetado especialmente pela redução dos corpos hídricos e expansão imobiliária. A população mais próxima da área de ocorrência tem respondido positivamente às conversas sobre a necessidade de preservação do animal e boas iniciativas, inclusive, de empreendimentos privados próximos ao local de ocorrência têm surgido.
OP – O que significa a presença dele no Geopark Araripe?
Allyson Pontes – Do ponto de vista da ciência, a descoberta nos ajuda a entender a história da evolução do clima e da paisagem da América do Sul. O caranguejo faz parte de um grupo amazônico, essa informação confirma que, ao longo da história do planeta, as variações do clima fizeram com que, em algum momento, a floresta Amazônica se estendesse até o que é hoje a Chapada do Araripe. Outra informação interessante e importante é que, possivelmente, os riachos onde o Caranguejo do Araripe é encontrado são os únicos que permaneceram com água continua dezenas de milhares de anos, período estimado do fim da última glaciação.
OP – Essa espécie de caranguejo já foi abundante no Ceará?
Allyson Pontes – Não se tem dados precisos sobre a abundância histórica do caranguejo do Araripe, mas, após a descoberta, várias pessoas relataram que em décadas passadas ele teria uma ocorrência bem maior do que a atual na região. Os motivos da diminuição devem estar relacionados com o aquecimento do planeta, secas mais frequentes, expansão imobiliária e tudo isso se relaciona com a disponibilidade de água. Estamos inseridos em uma matriz semiárida onde água, por definição, tende a ser cada vez mais rara.
OP – O perigo de extinção do caranguejo é mais um alerta sobre a recarga d´água no Cariri cearense?
Allyson Pontes – Há diversos estudos que mostram que a região do Cariri, apesar de ainda representar um oásis no meio ao sertão, tem sofrido com disponibilidade cada vez menor de água. Há baixa recarga dos mananciais e risco de colapso em um horizonte temporal curto. Com cada vez menos água, maior tende a ser pressão sobre a água disponível. Dessa forma, de alguma maneira, a presença do caranguejo do Araripe e sua preservação na região estão ligadas diretamente à sobrevivência do próprio homem na região. Matas preservadas resultam em melhor recarga. O que garante água corrente e traz a condição de sobrevivência do caranguejo. Também a poluição pode ser um problema, mas o mais urgente hoje é ter água nos rios.
OP – O senhor, juntamente com o paleontólogo Álamo Saraiva, está descrevendo um fóssil de lagosta na Antártica. Que espécie é essa?
Allyson Pontes – Estamos colaborando com o Museu Nacional em um projeto que estuda fósseis da Antártica. Foi coletado bastante material de crustáceos que está sendo analisado e, em breve, deveremos apresentar novidades. O material analisado é um pouco mais recente do que o do Araripe, cerca de 70 milhões de anos. Não posso adiantar mais detalhes até que o achado tenha sido cientificamente aceito.
OP – Por qual motivo os pesquisadores do Geopark Araripe foram convidados para integrar a pesquisa?
Allyson Pontes – Fomos convidados a compor a equipe do Museu Nacional em virtude da experiência comprovada pelo grupo da Universidade Regional do Cariri em trabalhar com crustáceos fósseis. Ainda são poucos os pesquisadores brasileiros que se dedicam a este grupo fóssil. O projeto do Museu Nacional chama-se PaleoAntar. É coordenado pelo atual diretor do Museu Nacional, o professor Alexander Kellner, que é colaborador de longa data da Urca e do Geopark Araripe. O Projeto está em pleno desenvolvimento, já ocorreram quatro idas ao continente gelado, das quais uma eu tive a oportunidade de participar. Muito material foi coletado e trazido para o Museu Nacional. O projeto tinha foco inicial em vertebrados fósseis, especialidade do professor Kellner. No entanto, foi ampliado para contemplar outros aspectos em virtude da quantidade e qualidade do material encontrado.
OP – O senhor é o novo diretor do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri. O que falta para o Museu ser referência no mundo já que está na Bacia do Araripe?
Allyson Pontes – O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens tem um potencial extraordinário em virtude da quantidade e qualidade de seu acervo. São 6 mil peças catalogadas de diversos grupos e atualmente temos 17 holótipos. O holótipo é aquela peça que dá nome a uma espécie descrita. Em qualquer museu esse é o material mais importante. O museu tem crescido em visibilidade e importância, haja vista o destaque recente no carnaval carioca. Cresce anualmente em visitação. Ano passado foi visitado por 36 países e este ano registramos 20 países. Em importância científica, atualmente temos um pesquisador chinês com bolsa da Funcap para trabalhar com pterossauros e um aluno de doutorado português que fará uma tese com aproveitamento do rejeito da pedra Cariri. Para continuar avançando precisamos continuar ganhando respeito científico com colaborações entre instituições e pesquisadores. Ainda este ano, devemos assinar um convênio com a China para colaboração científica, da mesma forma com o Senckenberg Institute da Alemanha. Além de uma colaboração, cada vez maior, com o Museu Nacional e o Museu de Zoologia da USP.
Camarões
Beurlenia araripensis (Martins Neto e Mezzalira, 1991)
Paleomattea deliciosa (Maisey e Carvalho, 1995)
Kellnerius jamacaruensis (Santana Pinheiro, da Silva Saraiva, 2013)
Araripenaeus timidus (Pinheiro, Saraiva e Santana, 2014)
Caranguejo
Araripecarcinus ferreirae (Martins Neto, 1987)
Exucarcinus gonzagai (Ludmila Cadeira do Prado, 2019)
Romualdocarcinus salesi (Ludmila Cadeira do Prado, 2019)

O QUE VISITAR NO GEOPARK
O peregrino que quiser se aventurar pelas trilhas oficiais do Geopark Araripe, primeiro das Américas e único no Brasil chancelado pela Unesco, terá avistamentos surpreendentes no Cariri cearense. O geoparque é um lugar de turismo científico, de aventura e religioso nos nove geossítios, situados em seis municípios. Por enquanto!


Território sustentável
Reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca), Francisco Lima Júnior, afirma que ”não se faz desenvolvimento sustentável a curto prazo. Leva tempo”. No Geopark Araripe falta afinar a gestão com as prefeituras
“O Geopark Araripe não é um parque de diversões fechado para visitação turística”. Quem diz é o reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca), Francisco do O’ de Lima Júnior, membro da Equipe do Araripe Geopark Mundial da Unesco, doutor em Desenvolvimento Econômico e professor do Departamento de Economia da Urca. A afirmação foi uma resposta a questionamento sobre a falta de estrutura para o recebimento de visitantes na maioria dos nove geossítios visitados pelo O POVO. Onde não há locais para alimentação, hidratação simples, banheiros e segurança no lugar.
OS LABORATÓRIOS
Há diferenças entre os laboratórios do Museu de Paleontologia, em Santana do Cariri, e o Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (LPU). Álamo Saraiva, coordenador do LPU, explica que os equipamentos do Museu contam apenas com máquinas de preparação mecânica e lupas para auxiliar os pesquisadores e estudantes que vão até Santana ver um determinado grupo de fósseis para complementar pesquisa.

Família de ex-peixeiros
O projeto Geopark Araripe pode mudar a trajetória de algumas escritas enviesadas. O tráfico de fósseis, por exemplo, foi interrompido na história de uma família em Santana do Cariri
Em uma mata de transição de Caatinga, no Parque dos Pterossauros, Antônio Araújo Ferreira, 55, vai e volta na infância em Santana do Cariri. Entre as recordações, as histórias marcantes do pai, Bonifácio Malaquias Ferreira, já falecido. Um agricultor que, por necessidade, falta de informação e demanda constante de traficantes de fósseis à porta, largou a roça para cavar e vender fósseis para contrabandistas de “passado”.
Não sai da memória de Araújo o dia em que o pai achou “cinco rodas (talvez vértebras) de um pterossauro”. Nem quando cavou uma pedra em formato semelhante de um “pedúnculo de caju”. Os traficantes cresceram os olhos e caíram em cima para levar, era incomum em meio ao oceano de “pedra de peixe”. O suposto pterossauro, recorda, foi vendido por “uns contos. Quem comprou, depois, revendeu por R$ 60 e outro repassou por R$ 600. E quanto não terá custado no estrangeiro?”, se pergunta Araújo.
– O Parque dos Pterossauros fica no Sítio Canabrava, em Santana do Cariri, há 521 km de Fortaleza (CE). São 18,2 hectares de Caatinga onde se pode escavar para prospecções paleontológicas.
– A propriedade, segundo Álamo Saraiva, do Laboratório de Paleontologia da Urca, foi doado por um empresário norte-americano.
– Desinformado sobre as leis no Brasil contra o tráfico de fósseis, o empresário teria comprado o sítio na década de 80 para levar fósseis daqui e vendê-los nos EUA, onde o comércio é legal.
– Nos EUA, segundo Álamo Saraiva, teria deixado o comércio de peixe vivo para se dedicar a busca por “pedras de peixes” encontradas na “inóspita” Santana do Cariri.
– Preso com uma carga de fósseis, teria conseguido provar que desconhecia a ilegalidade. Descontente, teria resolvido doar as terras para a Urca.
– No dia em que estivemos no Parque dos Pterossauros havia uma escavação de 5m x 5m. Uma sala de aula a céu aberto, onde se encontram 5,2 fósseis por cada metro cúbico de sedimento. Há níveis com 15 exemplares.

Dois universos paralelos
Os sítios Santa Fé e Caldeirão do Deserto da Santa Cruz, no Crato, contam outras histórias, além da paleontologia, sobre a formação do povo Cariri. Os dois aguardam o selo de geossítio
Depois de uma pequena trilha de 700 metros e uma entrada à esquerda após a cerca de sabiás, um paredão de arenito na mata fechada tem segredos. Pinturas e esculturas rupestres, provavelmente, de tuiuiús, de uma serpente e de outros enigmas desenham partes da rocha gasta. Bem por ali, supostamente, entrançaram indígenas seguindo o caminho das águas do Cariri. Povos que habitaram ou atravessaram o Sul do Ceará antes das invasões europeias, no século XVII.

Do dia para noite, foram acusados de “comunistas”, além de fanáticos do Padre Cícero. E, sob o pretexto da ameaça de uma nova Canudos de Antônio Conselheiro, Getúlio Vargas mandou acabar com o Caldeirão, em 1937. O Exército nega o massacre, mas há registro em jornais da época.
37 KM
É a distância do Sítio Caldeirão para a sede do Crato. O nome “caldeirão” seria por causa de uma queda d´água em um acidente rochoso semelhante a uma panela grande2008
ONG cearense SOS Direitos Humanos pediu na justiça a identificação dos descendentes dos mortos no Caldeirão. A ação foi arquivada1987
Ano do lançamento do documentário Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, do cineasta Rosemberg Cariry

Onde fé e a ciência se encontram
Na Colina do Horto, o geossítio é o encontro de um evento geológico da Chapada do Araripe com as manifestações da cultura da fé
De Marechal Deodoro, no agreste alagoano, João Batista da Silva, 56, veio ter com a memória perpétua de padre Cícero, em Juazeiro do Norte. A crença de que o “padim” o fez voltar a andar, “depois de um ano paralítico”, virou paga de promessa perene pela “graça alcançada”. Enquanto viver e as pernas aguentarem, projeta João Batista, ele trará o corpo agradecido à “terra santificada” pelo padre milagreiro, por Mãe das Dores, pela beata Maria de Araújo, pelo beato José Lourenço e por uma nação de romeiros que se renova na oralidade no Nordeste e numa tenência de credo em família.
“Eu não sei explicar direito o que é Geopark. Mas depois dessa proteção, é uma proteção, né? Hoje, tem banco pra o romeiro se sentar. Muita placa e as nove barracas, agora, são de tijolos. Ficou mais organizado”, observa Damião Francisco. Um cearense, filho de mãe paraibana e pai juazeirense. “Minha mãe veio com meus avós para uma romaria aqui e acabaram ficando pra morar”, biografa o homem do Cariri.
Demitri Túlio
ESTÁTUA DO PADRE CÍCERO
27 metros é altura da estátua de padre Cícero. Esculpida por Armando Lacerda em 1969.
7 metros era o tamanho inicial proposto para o monumento ao padre e líder político, falecido em 1934.
50 anos tem a estátua do padre Cícero. Em seu entorno, há um museu, uma igreja e muito comércio.